O SENTIMENTO GRÃO-LUSÓFONO
Sabe aquele sentimento de identificação e satisfação mútua que se observa num grupo de homens que, entre pequenas risadas e sorrisos compassivos, assiste a algum deles compartilhar suas conquistas sexuais? Existe aí um sentimento chauvinista, de quem traz ao presente a imagem arcaica do líder da horda, aquele único eu que, segundo Freud, podia gozar, à custa da retenção do desejo dos demais. O gozo desses outros era transferido: gozavam pelo gozo alheio.
Passa-se algo assim, mais ou menos assim, na relação das civilizações modernas com suas pátrias, suas culturas, suas línguas. Ao seu tempo, Lênin deu a esse chauvinismo nacionalista então existente na Rússia o nome de sentimento grão-russo. No Brasil de hoje, assistimos ao nascimento de algo parecido, a que poderíamos nomear de sentimento grão-lusófono.
O escândalo em torno de um livro que ninguém leu – esse mesmo que você está pensando, o livro do MEC – expressa esse sentimento de elevada indignação contra a defesa militante que sua autora faria do “linguajar” popular e do seu suposto desprezo à norma culta. Há aí um sentimento de superioridade linguístico-cultural, que expressa, antes de tudo, um sentimento de superioridade social. É a fala dos de baixo, desses ignorantes e incultos, no limite, incivilizados, que não pode ser reconhecida e à qual não pode ser dada qualquer legitimidade. Em outras palavras, o problema não é gramatical, mas político!
Mas esse conservador sentimento grão-lusófono não está apenas nos inimigos do MEC, está também no próprio Ministério da Educação, em sua Secretaria de Diversidade e Inclusão (antiga Secretaria de Educação Especial). O tratamento preconceituoso com a Língua Brasileira de Sinais, o desreconhecimento solene de que ela constitui uma língua, com a mesma estrutura gramatical e cosmovisão lexical de qualquer outra, se demonstra justamente numa política educacional que aliena as crianças surdas do aprendizado “de” e “em” sua língua natural.
Em todo o país, crianças surdas estão colocadas em salas de aula de ouvintes, nas quais o português é a língua de instrução. Espalhadas em escolas e salas de aula diversas, crianças surdas se encontram solitárias em ambientes escolares nos quais não encontram ninguém com quem conversar, não podendo vivenciar e desenvolver sua própria língua. Sem língua alguma, apresentam-se sérios entraves ao seu desenvolvimento cognitivo, à sua organização psíquica dos afetos e desejos, à sua relação simbólica com o real.
O que está no fundo dessa política não é apenas a consideração pré-saussuriana de que há línguas superiores e línguas inferiores (sim, para Saussure, a Libras não seria, em sua natureza linguística enquanto língua, nem pior nem melhor do que o grego clássico ou o francês moderno...). Está aí principalmente esse sentimento grão-lusófono da língua dos de cima, da “língua culta” que deve ser ensinada a esses que durante décadas foram forçados a falarem sua língua de sinais escondidos nos banheiros, por atrás das paredes das escolas ou naquelas associações que só pobres frequenta(va)m. A Língua Brasileira de Sinais se forjou como língua histórica de uma minoria linguística – sim, uma minoria linguístico-cultural – cujos direitos, apesar de inscritos em leis, continuam sendo cotidianamente desrespeitados.
Quando os surdos exigem salas de aula e escolas bilíngues, nas quais “a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo” (Decreto 5.626/2005, art. 22, § 1), são chamados de “segregacionistas” pelos comissionados do MEC e seus seguidores. O Ministro nada faz para conter seus subordinados; com isso, autoriza que os mínimos direitos legais dos surdos sejam cotidianamente pisoteados por funcionários públicos negligentes de suas obrigações, permanecendo entre os ouvintes seus superiores uma terna complacência. Nossa maioria linguística é extremamente solidária e complacente com seus iguais, mas extremamente intolerante com as minorias linguísticas, seus diferentes. Mais uma vez, esse é o sentimento grão-lusófono do qual agora o próprio MEC é vítima.
Sabe aquele sentimento de identificação e satisfação mútua que se observa num grupo de homens que, entre pequenas risadas e sorrisos compassivos, assiste a algum deles compartilhar suas conquistas sexuais? Existe aí um sentimento chauvinista, de quem traz ao presente a imagem arcaica do líder da horda, aquele único eu que, segundo Freud, podia gozar, à custa da retenção do desejo dos demais. O gozo desses outros era transferido: gozavam pelo gozo alheio.
Passa-se algo assim, mais ou menos assim, na relação das civilizações modernas com suas pátrias, suas culturas, suas línguas. Ao seu tempo, Lênin deu a esse chauvinismo nacionalista então existente na Rússia o nome de sentimento grão-russo. No Brasil de hoje, assistimos ao nascimento de algo parecido, a que poderíamos nomear de sentimento grão-lusófono.
O escândalo em torno de um livro que ninguém leu – esse mesmo que você está pensando, o livro do MEC – expressa esse sentimento de elevada indignação contra a defesa militante que sua autora faria do “linguajar” popular e do seu suposto desprezo à norma culta. Há aí um sentimento de superioridade linguístico-cultural, que expressa, antes de tudo, um sentimento de superioridade social. É a fala dos de baixo, desses ignorantes e incultos, no limite, incivilizados, que não pode ser reconhecida e à qual não pode ser dada qualquer legitimidade. Em outras palavras, o problema não é gramatical, mas político!
Mas esse conservador sentimento grão-lusófono não está apenas nos inimigos do MEC, está também no próprio Ministério da Educação, em sua Secretaria de Diversidade e Inclusão (antiga Secretaria de Educação Especial). O tratamento preconceituoso com a Língua Brasileira de Sinais, o desreconhecimento solene de que ela constitui uma língua, com a mesma estrutura gramatical e cosmovisão lexical de qualquer outra, se demonstra justamente numa política educacional que aliena as crianças surdas do aprendizado “de” e “em” sua língua natural.
Em todo o país, crianças surdas estão colocadas em salas de aula de ouvintes, nas quais o português é a língua de instrução. Espalhadas em escolas e salas de aula diversas, crianças surdas se encontram solitárias em ambientes escolares nos quais não encontram ninguém com quem conversar, não podendo vivenciar e desenvolver sua própria língua. Sem língua alguma, apresentam-se sérios entraves ao seu desenvolvimento cognitivo, à sua organização psíquica dos afetos e desejos, à sua relação simbólica com o real.
O que está no fundo dessa política não é apenas a consideração pré-saussuriana de que há línguas superiores e línguas inferiores (sim, para Saussure, a Libras não seria, em sua natureza linguística enquanto língua, nem pior nem melhor do que o grego clássico ou o francês moderno...). Está aí principalmente esse sentimento grão-lusófono da língua dos de cima, da “língua culta” que deve ser ensinada a esses que durante décadas foram forçados a falarem sua língua de sinais escondidos nos banheiros, por atrás das paredes das escolas ou naquelas associações que só pobres frequenta(va)m. A Língua Brasileira de Sinais se forjou como língua histórica de uma minoria linguística – sim, uma minoria linguístico-cultural – cujos direitos, apesar de inscritos em leis, continuam sendo cotidianamente desrespeitados.
Quando os surdos exigem salas de aula e escolas bilíngues, nas quais “a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo” (Decreto 5.626/2005, art. 22, § 1), são chamados de “segregacionistas” pelos comissionados do MEC e seus seguidores. O Ministro nada faz para conter seus subordinados; com isso, autoriza que os mínimos direitos legais dos surdos sejam cotidianamente pisoteados por funcionários públicos negligentes de suas obrigações, permanecendo entre os ouvintes seus superiores uma terna complacência. Nossa maioria linguística é extremamente solidária e complacente com seus iguais, mas extremamente intolerante com as minorias linguísticas, seus diferentes. Mais uma vez, esse é o sentimento grão-lusófono do qual agora o próprio MEC é vítima.
Emiliano Aquino